Se posto diante de uma platéia anti-reflexiva, O Fim da Picada, que marca a estréia de Christian Saghaard na direção de longas-metragens, pode parecer que beire o delírio e a loucura, sugestionando não ter nexo nem sentido algum. A subversão da maneira corriqueira de se contar estórias ou histórias que possuem início, meio e fim (não necessariamente dispostos na tela nessa ordem), além da temática abordada, que transpassa a narrativa, influenciando sua linguagem e estática, causa certo estranhamento em um primeiro momento. Entretanto, a perturbação e a angústia causadas tanto pelo tema escolhido pelo diretor como pela forma nada convencional como é narrado levam o espectador mais atento a uma reflexão profunda, notando que o filme vai muito além de uma simples aberração.
Saghaard dá início a seu novo filme a partir de Macário, que participa de um ritual satânico em uma praia brasileira por volta de 1850. Após um encontro com Exú-Lebara (entidade feminina do Candomblé), Macário decide subir a serra na companhia dela em direção a São Paulo. Entretanto, ao chegar na cidade, depara-se com a imensa metrópole caótica do século XXI. É evidente a influência da peça teatral Macário, escrita por Álvares de Azevedo em 1852, no filme, não apenas pelo nome em comum de seus protagonistas. Ambas as obras partem de um encontro entre sua personagem principal e o satã, além de criticarem a sociedade de seu tempo e, mais do que isso, a São Paulo de seu tempo. Porém, O Fim da Picada não se trata simplesmente de uma adaptação da obra literária para o cinema e essa, certamente, não é a única influência perceptível na obra. Também nota-se perfeitamente o flerte do diretor com o cinema marginal tanto pela subversão da linguagem cinematográfica, como por sua preocupação social. Há ainda certa semelhança com Macunaíma, filme dirigido por Joaquim Pedro de Andrade em 1969 e baseado na obra homônima de Mário de Andrade, na medida em que satiriza aspectos do mundo atual, utilizando-se de figuras do folclore nacional. Saghaard desvincula-se do tempo e recorre a personagens folclóricos, místicos e fantásticos a fim de criticar os absurdos que permeiam a realidade mundana; ou seja, busca elementos além da realidade para denunciá-la. Além disso, Macunaíma é um anti-herói, da mesma forma que todos os personagens que compõem a trama de Saghaard.
Assim, figuras estranhas fictícias parecem misturar-se a figuras esquisitas reais, não sendo mais possível distinguir o que é delírio do que é absurdo, mas faz parte da vida real. A loucura que parece compor a trama disposta na tela é ainda moldada pela estética audaciosa do diretor, que se utiliza anarquicamente das imagens, pode-se dizer, justapondo-as, acelerando-as, fazendo intervenções em suas cores e unindo-as a uma sonoridade que termina de compor o ritmo inquietamente e perturbador do filme. O incrível dos efeitos é que a grande maioria deles foi realizada na própria captação das imagens.
Trabalhando com temas extremamente próximos a nós, como a violência, as drogas, a preocupação exacerbada com a aparência, a falta de atenção ao que está bem debaixo do nosso nariz e o que mais puder se encontrar nas entrelinhas da narrativa, Saghaard põem tudo isso na tela, muitas vezes, em subtexto, dificultando a compreensão do espectador de forma proposital. É justamente no estranhamento causado por ele que está um de seus maiores méritos, pois seu objetivo é fazer o público refletir sobre as bizarrices com as quais normalmente se depara, mas raramente dedica sua atenção. Depois dos curtas-metragens O Palco (1992), Meressias (1994), Sinhá Demência e Outras Histórias (1996), Demônios (2004) e Isabel e o Cachorro Flautista (2005), Saghaard realiza mais um filme que promete mais incomodar do que divertir.
Saghaard dá início a seu novo filme a partir de Macário, que participa de um ritual satânico em uma praia brasileira por volta de 1850. Após um encontro com Exú-Lebara (entidade feminina do Candomblé), Macário decide subir a serra na companhia dela em direção a São Paulo. Entretanto, ao chegar na cidade, depara-se com a imensa metrópole caótica do século XXI. É evidente a influência da peça teatral Macário, escrita por Álvares de Azevedo em 1852, no filme, não apenas pelo nome em comum de seus protagonistas. Ambas as obras partem de um encontro entre sua personagem principal e o satã, além de criticarem a sociedade de seu tempo e, mais do que isso, a São Paulo de seu tempo. Porém, O Fim da Picada não se trata simplesmente de uma adaptação da obra literária para o cinema e essa, certamente, não é a única influência perceptível na obra. Também nota-se perfeitamente o flerte do diretor com o cinema marginal tanto pela subversão da linguagem cinematográfica, como por sua preocupação social. Há ainda certa semelhança com Macunaíma, filme dirigido por Joaquim Pedro de Andrade em 1969 e baseado na obra homônima de Mário de Andrade, na medida em que satiriza aspectos do mundo atual, utilizando-se de figuras do folclore nacional. Saghaard desvincula-se do tempo e recorre a personagens folclóricos, místicos e fantásticos a fim de criticar os absurdos que permeiam a realidade mundana; ou seja, busca elementos além da realidade para denunciá-la. Além disso, Macunaíma é um anti-herói, da mesma forma que todos os personagens que compõem a trama de Saghaard.
Assim, figuras estranhas fictícias parecem misturar-se a figuras esquisitas reais, não sendo mais possível distinguir o que é delírio do que é absurdo, mas faz parte da vida real. A loucura que parece compor a trama disposta na tela é ainda moldada pela estética audaciosa do diretor, que se utiliza anarquicamente das imagens, pode-se dizer, justapondo-as, acelerando-as, fazendo intervenções em suas cores e unindo-as a uma sonoridade que termina de compor o ritmo inquietamente e perturbador do filme. O incrível dos efeitos é que a grande maioria deles foi realizada na própria captação das imagens.
Trabalhando com temas extremamente próximos a nós, como a violência, as drogas, a preocupação exacerbada com a aparência, a falta de atenção ao que está bem debaixo do nosso nariz e o que mais puder se encontrar nas entrelinhas da narrativa, Saghaard põem tudo isso na tela, muitas vezes, em subtexto, dificultando a compreensão do espectador de forma proposital. É justamente no estranhamento causado por ele que está um de seus maiores méritos, pois seu objetivo é fazer o público refletir sobre as bizarrices com as quais normalmente se depara, mas raramente dedica sua atenção. Depois dos curtas-metragens O Palco (1992), Meressias (1994), Sinhá Demência e Outras Histórias (1996), Demônios (2004) e Isabel e o Cachorro Flautista (2005), Saghaard realiza mais um filme que promete mais incomodar do que divertir.
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Na foto, Christian Saghaard, diretor do longa, durante a premiação do CineEsquemaNovo2008. O Fim da Picada ganhou o prêmio de melhor longa-metragem pelo júri de premiação e pela nova crítica.
Foto de Aline Duvoisin