domingo, dezembro 09, 2007

O livro depois da história já revelada

A história pode já ser conhecida. Seu término, também. Afinal, tudo se passou em 1955, já há bastante tempo, quando sua primeira versão foi publicada no jornal El Espectador, em Bogotá, na Colômbia. Aliás, é o próprio Gabriel García Márquez quem não mantém mistério algum e a revela desde o começo – indício de que o conhecimento do fato não empana sua obra. Se foi republicada, quinze anos depois, em livro, há de pelo menos se supo que mereça ser lida. E, de fato, merece. Não só faz jus a tal suposição, como nos deixa tensos como se estivéssemos em contato com ela pela primeira vez, ainda que já saibamos seu fim.
Caldas, um navio da Marinha de Guerra da Colômbia, que saíra dos Estados Unidos com destino a seu país de origem, naufraga ao ser acometido por uma terrível tempestade no mar do Caribe. Passados poucos dias de busca, órgãos oficiais declararam mortos seus oito tripulantes. Entretanto, dez dias depois, surge, com vida, Luis Alejandro Velasco, único sobrevivente do desastre, para contar sua verdadeira história. Foi através das declarações do marinheiro que García Márquez escreveu Relato de um náufrago, revelando informações às quais a imprensa, até então, não tivera acesso e publicando, durante catorze dias consecutivos, no jornal onde trabalhava, a história do acidente e dos dias vivenciados por Luis Alejandro Velasco tentando sobreviver em uma balsa em alto mar.
A história começa quando a embarcação está prestes a deixar o território estadunidense e vai até a chegada do marinheiro no Hospital Naval de Cartagena, onde é mantido, a todo custo, longe do contato com os jornalistas. A maior parte da história, todavia, conta o período angustiante passado por Luis Alejandro Velasco, sozinho, dentro de uma pequena balsa, sem ter o que comer e nem beber. E, mesmo sendo de conhecimento do leitor que o texto foi escrito com base num relato do próprio sobrevivente, a perspicácia de García Márquez salta aos olhos. Afinal, como prender o leitor a um fato que não transpassa uma balsa de poucos metros, nem o infinito azul do mar? De que maneira, transcrever as emoções vividas, durante dez dias consecutivos, por um ser abandonado em meio a quilômetros e mais quilômetros de pura água salgada sem ser repetitivo? Mas se trata de García Márquez, jornalista e escritor que, doze anos depois, escreveu seu livro mais renomado, Cem Anos de Solidão, em que consegue manter a atenção do leitor focada em parágrafos que se estendem por três páginas, e, por conseqüência disso, entre outros motivos, foi condecorado com o Nobel de Literatura em 1982.
Sua ousadia fez com que o relato agitasse a Colômbia, exilando-o, então com apenas 27 anos, em Paris, na França, além de relegar à clausura o jornal El Espectador e desgraçar a carreira do único marinheiro sobrevivente ao desastre, que, com a mesma rapidez com que ficou conhecido nacionalmente por seu tamanho heroísmo, foi relegado ao esquecimento. Quiçá por isso o autor tenha presenteado a obra ao seu herói ao afirmar que “há livros que não são de quem os escreve, mas de quem os sofre, e este é um deles”.

domingo, dezembro 02, 2007

Dolorosamente humano

O mínimo que se precisa conhecer sobre Fiódor Dostoiévski, antes de se aventurar a ler e a tentar entender sua obra, é a tamanha profundidade que ele consegue alcançar. Quem busca na literatura diversão e fuga dos infortúnios da realidade deve manter distância dele. Que recorra a ele quem deseja adentrar as entranhas do humano incompreensível e contraditório e refletir sobre a relação deste e os males do mundo. Embora, desde o início, a percepção social estivesse presente em suas histórias, é com Memórias do Subsolo, publicada em 1864, que o autor russo embrenha-se no universo dos conflitos psicológicos, morais e sociais de forma espantosa, relacionando-o ao desejo de fuga do humano de tais achaques através de seu próprio fim enquanto matéria. Exatamente por sua sagacidade na descrição de detalhes por vezes aparentemente intraduzíveis, se torna necessário deixar claros os limites impostos a uma resenha dessa novela.
A história está dividida em duas partes diferentes, porém intimamente ligadas entre si: O Subsolo e A Propósito da Neve Molhada. A primeira trata-se de um longo monólogo em que o personagem-narrador anônimo confidencia ao leitor suas mais desprezíveis e intrigantes características. Trata-se de um homem doente, que vive num apartamento localizado no subsolo de um edifício na companhia de um empregado ao qual humilha e menospreza. Demonstra plena consciência de sua mediocridade, mas, ao mesmo tempo, não se desvencilha praticamente nunca da arrogância insuportável que o assola. Deprecia todos que o rodeiam e deseja imensamente a solidão, da mesma maneira que parece aspirar à morte, ignorando sua saúde deficitária. Entretanto, sua condição humana o põe diante de situações em que lhe acomete o medo e em que acaba cobiçando imensamente fugir de sua condição. Esse personagem origina um monólogo ambíguo, em que ele afirma e, em seguida, nega o que acabou de afirmar, seja por meio de palavras ou do relato de suas próprias ações. Apesar de narrada em primeira pessoa, a segunda parte oportuniza ao leitor colocar-se como observador de quem acaba de confessar muito de sua personalidade; e averiguar a veracidade ou falsidade de seu relato, pois nos põe diante das próprias circunstâncias vivenciadas por esse narrador, inclusive algumas que ele expõe na primeira parte.
Escrito no momento em que a primeira esposa de Dostoiévski estava à beira da morte, não é um livro que afirma, mas que metralha o leitor de dúvidas. E é exatamente nisso que está um de seus maiores méritos. Afinal, se somos realmente esse humano tão confuso, temos nós a certeza de algo? A obra atormenta o leitor e não dá a ele nenhum momento do conforto almejado pela sociedade acabrunhada e desiludida. Quiçá só proporcione prazer àqueles que concordem com o personagem, que afirma ser “justamente no desespero que ocorrem os prazeres mais ardentes”. Parece não ser à toa que alguns identifiquem na obra prefigurações das reflexões de Sigmund Freud sobre o inconsciente humano. Influenciados por Memórias do Subsolo, materializam-se Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869) e Os Demônios (1872), representando a maturidade do maior expoente da literatura russa.

domingo, novembro 11, 2007

A vida secreta das palavras (2005)

Provavelmente beire o impossível tentar traduzir em palavras e, talvez mais ainda, em papel o tema de um filme que transpassa em demasiado a linguagem. Não é à toa que o nome da obra é A Vida Secreta das Palavras. Também não é por acaso que a principal personagem da trama pronuncie apenas o básico e quase somente quando inevitável, além de assumir sua surdez quando deseja distanciar-se dos sons a sua volta.
Hanna (Sarah Polley) trabalha há um bom tempo na mesma fábrica sem tirar um único dia de folga. Metódica, acostumada a realizar todos os dias, nos mesmos horários, as mesmas atividades, vê-se obrigada a relegar sua rotina, quando é convocada por seu chefe a tirar férias. Hanna não se relaciona com ninguém e, sem amigos, acaba viajando sozinha. Logo no seu primeiro dia de férias, descobre que precisam de uma enfermeira – função que exerce muito bem – para tratar de um homem que sofreu queimaduras gravíssimas, vítima de um incêndio ocorrido numa plataforma de petróleo.
No meio do oceano, a moça conhece Josef (Tim Robbins), que está temporariamente cego, em função das queimaduras sofridas. Acometidos por situações comuns – ambos sem um dos sentidos – iniciam, por meio de chantagens e trocas, confidências mútuas. Enquanto Hanna evita emitir palavras o máximo que pode, Josef aproxima-se do galanteador, mencionando as primeiras idéias que lhe surgem à cabeça. Aos poucos, ela vai rendendo-se sutilmente à linguagem e ele vai percebendo que às vezes as palavras tornam-se desnecessárias, pois comunicam menos do que deveriam.
O enredo ainda é incrementado pela brilhante atuação do cozinheiro Simon (Javier Cámara), que eventualmente quebra a seriedade do filme com tons levemente piadistas. Eles dividem a plataforma com mais alguns homens que ali trabalham –cada um com suas fugas e mistérios – e aprendem a lidar diariamente com a solidão.
A diretora espanhola Isabel Coixet – a mesma do brilhante Minha Vida Sem Mim – introduz lentamente, a partir de uma história que parece particular, um tema global que será desvendado exclusiva e intencionalmente no final. Ali, revela, de maneira peculiar, o segredo desta personagem tão profundamente absorta. Minhas ressalvas vão somente à voz em off que narra determinadas partes da história, que, além de não ser auto-explicativa, ao tentar ser justificada, não o é de forma eficaz. A ousadia e a profundidade de A Vida Secreta das Palavras o mantém, no entanto, merecedor dos prêmios Goya de melhor filme, diretor, roteiro e direção de produção, adquiridos em 2006. Uma experiência única e intensamente perturbadora.

sábado, outubro 06, 2007

Tudo por dinheiro

Um grupo de sete pessoas de diferentes nacionalidades reúne-se em Rolettenburg, na Alemanha, com identidades falsas, desfrutando da classe que, de repente, supunha-se, teriam conquistado. Sua ambição por dinheiro era tanta, que fariam o possível para adquiri-lo. Inclusive jogar às traças um parente prestes a falecer.
Essa é a trama abordada por Feódor Dostoievski no livro que mais despreza. O Jogador foi escrito às pressas em 1866, tendo como intuito pagar uma dívida do autor, que caso não o entregasse dentro do prazo estabelecido, perderia o direito às suas obras. Nele, o escritor russo desvencilha-se das teorias religiosas, nacionalistas e revolucionárias presentes na maioria de suas histórias, trocando-as pelo menosprezo à sociedade de seu país e pela vanglória à França. Mantém, porém, o mistério, que sabe, como poucos, trabalhar em suas narrativas. Nada é revelado de supetão, surpreendendo em certos momentos, as próprias personagens do enredo.
Aléxis Ivanovitch é o narrador e observador de tudo o que acontece na imaginação do autor. Ele sofre, ao longo do livro, tentativas de manipulação do grupo mal intencionado e, também, da senhora que todos desejam imensamente que morra – exceto Ivanovitch. Tudo por dinheiro. A par das armações contra AntoninaVassilievna Tarassevitch, permanece quase que constantemente ao lado dela. Mas o faz, essencialmente porque a velha não lhe dá trégua e raramente permite que manifeste sua opinião. Também é assediado, frequentemente, pelas idéias de sua grande paixão – Paulina Alexandrovna, integrantes do conjunto de maus-caráter e neta de Antonina. Por vezes, é tomado por recaídas e cede a suas súplicas dissimuladas.
Os momentos mais engraçados e envolventes estão presentes nas diversões de Paulina ao manipular Ivanovitch, que, quando tem sua coragem posta em dúvida pela moça, submete-se ao ridículo e atende a seus caprichos. O restante fica a cargo de sua avó, cuja personalidade é a mais marcante de todas as personagens. Fica por conta dela, também, a maioria das surpresas da história. São as duas – avó e neta – quem influenciam a gradual degradação de Ivanovitch. Ainda que não se trate de uma biografia, é evidente seu caráter autobiográfico, eis que Dostoievski, tal qual Ivanovitch, era jogador compulsivo. A tragédia familiar e o texto escrito em primeira pessoa enfatizam ainda mais a presença do autor na obra. A esperança e a deterioração dos personagens são claras; e a do autor posta nas entrelinhas, principalmente ao final do livro.

segunda-feira, outubro 01, 2007

Algo muito longe da felicidade

Estamos, diariamente, engajados em busca da conquista de tudo aquilo a que almejamos. E tudo o que cobiçamos, de alguma forma, centra-se na luta para atingir um mesmo fim: a felicidade. É basicamente esse o tema abordado no filme Algo como a felicidade, desenvolvido através de uma parceria entre a República Theca e a Alemanha. Ao contrário do que sugere o título, a trama contém pouquíssimos momentos de alegria, e são praticamente nulas as cenas em que os personagens cultivam o riso ou mesmo que a ele nos estimulem.
Sem pressa, o diretor Bohdan Sláma, o mesmo de Abelhas Selvagens, introduz o enredo de mansinho e parece ser quase sem querer que entramos no conflito vivenciado pelos personagens. A história tem como eixo a vida e a amizade de três jovens que vivem no subúrbio de uma pequena cidade industrial da República Tcheca. Toník (Pavel Liska), Monika (Tatiana Vilhelmová) e Dasha (Anna Geislerová) cresceram juntos e, já adultos, lutam pela independência e sobrevivência. Ao mesmo tempo, tentam descobrir, juntos, o que esperam do futuro, e acabam se envolvendo profundamente uns com os problemas dos outros e tendo suas vidas marcadas por essas dificuldades.
Tudo se inicia pelo drama de Monika que precisa aprender a viver longe de seu noivo, que deixa a cidade para tentar o sucesso nos Estados Unidos. Ela leva seus dias à espera de alguma notícia do amado e de um convite para encontrá-lo na América. Enquanto isso, lida diariamente com o casamento conturbado de seus pais.
Toník também apresenta dificuldades no relacionamento com seus familiares. Vive com a tia numa antiga casa herdada de seus antepassados, fugindo dos pais que tentam controlar sua vida e retirá-lo da independência. Trabalha como mecânico, a fim de tentar melhorar a antiga e decadente residência onde vive.
Vencedora de diversos prêmios, entre eles o de melhor filme no Festival Czech Lion em 2005, a obra tem como um de seus melhores méritos a atuação de Anna Geislerová, que levou o prêmio de melhor atriz no Festival de San. Ela incorpora Dasha, mãe de dois meninos pequenos que foram abandonados pelo pai, que se envolve profundamente com um homem que passa os dias enrolando-a com promessas jamais cumpridas. Atormentada com as catástrofes que a rodeiam, afasta-se cada vez mais seus amigos.
Ao contrário de se direcionar para a felicidade, o enredo parece ir deteriorando-se aos poucos e seus personagens mais parecem se acostumar com sua ruína do que se superarem. Suas histórias tornam-se ainda mais completas e, consequentemente, profundas e tristes em sua relação com a trilha sonora eleita por Leonid Soybelman, que se adequa perfeitamente ao clima da trama. Ao mesmo tempo em que cultiva a tragédia, o filme demonstra como pequenas situações aparentemente sem importância e significado algum podem se transformar em bons momentos. Leves pitadas de felicidade, se é que assim se pode nomear-las.

domingo, setembro 23, 2007

Sonhadores em meio à revolução


Na década de 1960 em Paris, Henri Langlois é banido da direção da Cinemateca Francesa, desencadeando manifestações estudantis que acabaram tornando-se violentos tumultos de cunho político, social e moral. É nesse contexto que se desenvolve a trama do filme Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci, mas não é exatamente esse o seu tema. Bertolucci centra-se mais no que ocorre lado a lado e no que se mantém escondido em meio à revolta do que de fato nela.
Durante as manifestações, três jovens têm suas vidas unidas pela paixão pelo cinema. Isabelle (Eva Green) e Theo (Louis Garrel), gêmeos siameses, nutrem uma curiosidade em relação ao norte-americano Mattheu (Michael Pitt), que vai à Cinemateca sempre sozinho. Surge, então, uma oportunidade de contato entre eles, que se identificam instantaneamente. Identificam-se tanto que, assim que seus pais viajam, os irmãos convidam, ou melhor, praticamente intimam Mattheu a trocar o seu pequeno quarto pelo apartamento onde moram. Inicia-se uma estranha relação entre os três, que entremeia momentos de infantilidade e maturidade, imaginação e realidade – características já marcantes em alguns filmes do diretor italiano, como O Último Tango em Paris.
A história transcorre praticamente toda dentro de um apartamento, de onde os três quase nunca saem. Sua diversão é fazer adivinhações sobre cinema, ouvir música e discutir questões políticas e cinematográficas, enquanto ignoram a realidade que está do outro lado da porta. O pseudo-interesse pelos movimentos revolucionários pode ser percebido pela falta de contato dos jovens com as notícias, pelo abandono dos colegas da faculdade por parte de Theo e Isabelle e, principalmente, pela frase de Mattheu direcionada a Theo: “se você realmente acreditasse no que diz, estaria lá fora com os manifestantes”.
A narrativa centra-se durante a maior parte do tempo nos três protagonistas, mas não se torna, em nenhum momento, cansativa, demonstrando a competência de Bertolucci. A inserção de trechos de cenas clássicas do cinema acompanhadas dos maiores sucessos de rock da época exemplifica os diálogos, atraindo ainda mais o interesse do espectador. O diretor utiliza-se ainda de insinuações, deixando fatos quase se sucederem, mas não se sucedem. O espectador fica na expectativa de que tudo apareça na tela, mas não, Bertolucci prefere deixar nas entrelinhas.
O filme é repleto de cenas de nudez, sexo e masturbação, mas todas transcorrem na maior naturalidade. As representações de Eva, Louis e Michael colaboram ainda mais para sua eficácia; são tão convincentes, que nem parecem atuações. Ameaçado de censura antes de seu lançamento em 2003, Os Sonhadores acabou sendo exibido na íntegra. Não teria nenhum motivo para ser diferente, pois não há excesso algum.
O filme não se trata de nenhuma apelação pornográfica que ocorre em meio a um período tumultuado da história européia somente por ocorrer. Retrata os alienados que vivem a realidade como se fosse cinema e aderem à revolução mesmo sabendo pouco sobre ela.

quinta-feira, abril 12, 2007

A máquina de fazer tempo

Durmo seis horas por noite e acordo por volta das sete horas da manhã. Alguns diriam que eu posso me deleitar nos fins de semana. Entretanto, no sábado, minha aula de inglês não permite e, no domingo, caso decida extrapolar, não consigo pôr em dia as tarefas deixadas para trás durante a semana por falta de tempo. Mal ponho os pés no chão e a correria já me pega. E não é só comigo que funciona assim. Pelo menos isso me serve de consolo. Vejo colegas que precisam de dois empregos e mal sobra o fim de semana para estudar.
Me frustro com tudo isso, mesmo sabendo que quase ninguém que eu conheço consegue dar conta de tudo o que faz ou gostaria de fazer. Me frustrei mais ainda na segunda-feira, na reunião do projeto de pesquisa do qual sou bolsista. Durante o encontro surgiu o assunto Moacyr Scliar. Seja porque ele está de aniversário nesta semana ou por seu reconhecimento como escritor. Não importa. O que nos despertou mesmo atenção é que ele completa hoje* setenta anos e tem setenta e quatro livros publicados. O primeiro foi escrito aos 25 anos. Ele escreve mais de um livro por ano; eu mal dou conta de ler os jornais diários. Faz mais de um ano que tento terminar o roteiro de um média-metragem e não consigo parar, pensar e despejar no papel as idéias que faltam para aprofundar uma questão que ainda está superficial. O máximo que já consegui escrever na minha vida inteira por espontânea vontade foi o roteiro de um curta-metragem que tem cinco páginas. Escrevo freqüentemente, para algumas disciplinas da faculdade, textos de uma ou duas páginas, mas, confessando, acabo escrevendo somente porque sou obrigada a fazê-lo.
Não consigo ver o Scliar como uma pessoa comum que passa na rua por mim e dá bom dia. Para mim, parece que os dias são cada vez mais curtos. Para o Scliar parece que não. Dá aula de medicina preventiva na Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre e escreve livros que, muitas vezes, não têm relação alguma com medicina. Se não bastasse, contribui, ainda, com os impressos Zero Hora e Folha de São Paulo. Uma professora minha disse uma vez: “ele escreve tanto porque não é professor”. Engano seu. Ele não só é professor como, dentre todas suas atividades, ainda tem um filho. Já adulto, é verdade, mas, quando era pequeno, o Moacyr já escrevia. Scliar não só não é comum, como não é humano. É uma maquina de fazer tempo.
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*23/03

segunda-feira, janeiro 29, 2007

A pauta do azar

Saí de casa para um dia normal, esperando que nada demais acontecesse. Caminhei três quadras até a parada de ônibus, confabulando, durante o caminho, as desculpas que daria para o professor. Minha matéria não tinha ficado pronta. Pensei. Pensei e pensei. E não encontrei nenhuma justificativa melhor do que “não tenho assunto para fazer matéria”. A verdade era que eu tinha passado uma, duas, três semanas ou mais exigindo que meus neurônios interagissem entre si e descobrissem um supertema que ainda não tivesse sido abordado por ninguém ou, pelo menos, que tivessem um brilhante insight acerca de um viés para tratar de um assunto do qual todo mundo já está cansado. A mínima esperança que eu tinha era que um furo jornalístico caísse na minha cabeça como uma gota de chuva perdida no meio de um dia completamente ensolarado. O que eu poderia contar de novo para uma sociedade completamente globalizada e que gira em torno da informação e busca cada vez mais acesso a ela? A não ser que levasse esta até um lugar completamente desprovido da globalização, mas não estaria tratando de nenhum assunto diferente, apenas transportando os mesmos até um ponto do planeta que nunca tivesse tido acesso ao mundo “civilizado”. Quer dizer, acho que há bem mais chances de eles viverem num mundo civilizado porque o nosso está longe de poder ser mencionado assim. Ou, quem sabe, eu poderia trazer eles até a nossa realidade em forma de matéria jornalística. Não, não. Definitivamente não. Com certeza alguém já deve ter descoberto aquela aldeia isolada e, mesmo que ninguém tenha chegado até ali, seria uma injustiça acabar com a vidinha pacata e feliz deles entregando-os às mãos da globalização.
Na parada do ônibus havia eu, uma moça – um pouco mais velha do que eu, talvez – e uma senhora. O ônibus chegou no meio dos meus devaneios e eu estava tão perturbada e, ao mesmo tempo, entretida, que nem sei dizer se ele demorou ou não para chegar. Quando eu vi, ele já estava parado, com as portas abertas, bem na minha frente. Por sorte, num dia que previa ser de azar, tinham mais pessoas comigo na parada. Se não, provavelmente não o enxergaria e teria que criar raízes na parada até chegar o próximo. Esse C2 é uma lerdeza mesmo. Teoricamente deveria vir um a cada quinze minutos, mas normalmente demora vinte e, claro, quando eu estou chegando na parada, ele sempre acabou de passar.
Subi no veículo logo atrás da senhora e dispararam flashes de uma dezena de câmeras fotográficas em cima de mim. Pensei que tivessem descoberto meu talento assim, do nada, que soubessem que eu pego aquele ônibus todos os dias no mesmo horário e estivessem ali somente esperando a minha chegada. Mas, infelizmente, a atenção não era eu. Ou felizmente porque dificilmente alguém se agradaria de ser pego de surpresa por um monte de câmeras às oito horas da manhã quando não acordou de muito bom humor. A atenção estava bem na minha frente.
Uma senhora, num dia parecido com o que eu estava vivenciando hoje, teve sua alegria às oito horas da manhã com a pequena ação do cobrador do C2. Era aniversário dela e ninguém a tinha parabenizado. Quando o cobrador, conhecido como Melancia, perguntou se estava tudo bem, apenas por formalidade, ela respondeu que não e explicou seus motivos. Então, Melancia decidiu dar um presente a ela: uma festa de aniversário dentro do ônibus. E assim são todos os anos.
Essa seria uma pauta perfeita para mim: “pessoas que trabalham de bom humor”, “profissionais que alegram a vida dos seus clientes”, “gente que trabalha de um jeito especial” ou qualquer enfoque deste tipo. Mas eu estava atrasada. Atrasada demais. Aqueles flashes eram de jornais e estavam acompanhados por várias câmeras de emissoras de televisão. Não bastasse a RBS, até a TV Al Jazeera pautava a popularidade do Melancia e da, agora, alegra senhora que tem festa de aniversário todos os anos.
Com muita dificuldade, driblei meus colegas de profissão e a turma que se divertia como numa festa qualquer. Passei pela roleta e me sentei lá no fundo, piscando de sono. Mas não consegui dormir. A agitação era intensa. Repórteres faziam malabarismos tentando enquadrar a festa de aniversário e seus principais componentes. Pessoas que vivenciavam apenas um dia comum de sua rotina reclamavam, xingavam, achavam aquilo tudo uma palhaçada imensurável, inexplicável, intraduzível. Alguns poucos riam e divertiam-se comendo os pedaços de bolo de chocolate que passavam nos pratinhos, de mão em mão, até alcançar algum interessado na sua doçura. Fiquei quieta, num dos cantos do ônibus, assistindo uma magnífica pauta esvair-se por entre meus dedos. Terei que admitir ao professor meu fracasso.

sábado, janeiro 20, 2007

A nata intelectual fabicana na festa mais underground de Porto Alegre

A mais nova parte integrante de um dos setores mais intelectualmente qualificados da capital riograndense foi obrigada a promover uma festa. Na Fabico (Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS) é assim: os calouros entram achando que são reis porque acabaram de passar num vestibular dificílimo, mas são tão bem recepcionados por seus veteranos que, mesmo não querendo, são forçados a lhes presentear com uma festa. A festa mais alternativa do ano, com a galera mais intelectual da cidade. Decidi ir pra lá. Afinal, com esse público exageradamente pensante, a festa prometia. Prometia tanto que fiquei boquiaberta com o que lá vi.
As festas normais são em boates e as pessoas se arrumam tanto que não é possível reconhecê-las por trás daquela “camisa de força”. Mas a intelectualidade tem de aparecer, portanto ela não se esconde atrás de fantasias de luxo. Fui na festa com a mesma roupa que eu passei o resto do dia. Uma festa feita por uma galera que usa Allstar para um público que passa o dia com mochilas penduradas nas costas não exige muita produção.
As festas alternativas são no galpão do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – local onde as pessoas não pisam em cima de ti por pena. Um local perfeito para quem passa o dia inteiro de tênis e não se preocupa com aparências. A entrada é no barro (se chove vira um desastre!) – impossível equilibrar-se em cinco centímetros de salto naquela areia toda, quem dirá em dez, ainda mais agulha. A pista de dança é magnífica: volta e meia um escorrega e cai de bunda no chão naquele caldo composto de “ceva”, areia, suor e vômito que cobre todo o piso do salão.
A galera que curte as bandinhas desconhecidas, que venera o rock’n’roll e que menospreza o pagode delira ao som de Art Popular e Ivete Sangalo. As meninas que só usam calças largas espremem-se em calças de stretch ou fazem questão de mostrar suas coxas grossas – ainda que algumas não cheguem nem perto disso – em mini-saias que parecem cintos. Os Allstars do dia-a-dia transformaram-se em sandálias e botas de salto agulha de dez centímetros de altura, no mínimo, para esconder sua baixeza e insignificância. Do mesmo jeito que a abóbora transformou-se em carruagem a fim de levar a Cinderela até seu príncipe encantado. Mas é compreensível. Na festa havia centenas de príncipes encantados. Garotos inteligentes que carregam consigo todos os dias livros de literatura de diversas nacionalidades. Mas claro que na festa eles não estão com livros. Garotos que despejam nas garotas seus discursos intelectualizados para ver se levam alguma delas para casa, ou quem sabe para cama. Pouco lhes importa o que essas garotas vão lhes dizer depois, se sabem algo sobre literatura e, menos ainda, se entenderam alguma coisa da sua falação. Aliás eles rezam é para que elas não entendam e não notem todas as besteiras que falaram – que nada tem a ver com intelectualidade -, a fim de passar as mãos nas coxas que estão à mostra. Eles querem é que elas rebolem ao som do funk - que não dá trégua durante toda a noite de festa - para ver se suas mini-saias sobem mais um pouquinho (se é que é possível) e deixam escapar de trás de si algo mais.
Pseudo-intelectuais em uma festa pseudo-underground. Gente que através de uma metamorfose instantânea encarna uma pose que as bebidas alcoólicas destroem em questão de minutos. Os indivíduos “posudos” viram pessoas degradadas. Bêbados que, naquele momento, estão lado a lado com os “botequeiros” alcoólatras caídos no chão do lado de fora da festa. Passarão o fim de semana inteiro recuperando-se para na segunda-feira vestirem novamente sua máscara de nata intelectual.