Saí de casa para um dia normal, esperando que nada demais acontecesse. Caminhei três quadras até a parada de ônibus, confabulando, durante o caminho, as desculpas que daria para o professor. Minha matéria não tinha ficado pronta. Pensei. Pensei e pensei. E não encontrei nenhuma justificativa melhor do que “não tenho assunto para fazer matéria”. A verdade era que eu tinha passado uma, duas, três semanas ou mais exigindo que meus neurônios interagissem entre si e descobrissem um supertema que ainda não tivesse sido abordado por ninguém ou, pelo menos, que tivessem um brilhante insight acerca de um viés para tratar de um assunto do qual todo mundo já está cansado. A mínima esperança que eu tinha era que um furo jornalístico caísse na minha cabeça como uma gota de chuva perdida no meio de um dia completamente ensolarado. O que eu poderia contar de novo para uma sociedade completamente globalizada e que gira em torno da informação e busca cada vez mais acesso a ela? A não ser que levasse esta até um lugar completamente desprovido da globalização, mas não estaria tratando de nenhum assunto diferente, apenas transportando os mesmos até um ponto do planeta que nunca tivesse tido acesso ao mundo “civilizado”. Quer dizer, acho que há bem mais chances de eles viverem num mundo civilizado porque o nosso está longe de poder ser mencionado assim. Ou, quem sabe, eu poderia trazer eles até a nossa realidade em forma de matéria jornalística. Não, não. Definitivamente não. Com certeza alguém já deve ter descoberto aquela aldeia isolada e, mesmo que ninguém tenha chegado até ali, seria uma injustiça acabar com a vidinha pacata e feliz deles entregando-os às mãos da globalização.
Na parada do ônibus havia eu, uma moça – um pouco mais velha do que eu, talvez – e uma senhora. O ônibus chegou no meio dos meus devaneios e eu estava tão perturbada e, ao mesmo tempo, entretida, que nem sei dizer se ele demorou ou não para chegar. Quando eu vi, ele já estava parado, com as portas abertas, bem na minha frente. Por sorte, num dia que previa ser de azar, tinham mais pessoas comigo na parada. Se não, provavelmente não o enxergaria e teria que criar raízes na parada até chegar o próximo. Esse C2 é uma lerdeza mesmo. Teoricamente deveria vir um a cada quinze minutos, mas normalmente demora vinte e, claro, quando eu estou chegando na parada, ele sempre acabou de passar.
Subi no veículo logo atrás da senhora e dispararam flashes de uma dezena de câmeras fotográficas em cima de mim. Pensei que tivessem descoberto meu talento assim, do nada, que soubessem que eu pego aquele ônibus todos os dias no mesmo horário e estivessem ali somente esperando a minha chegada. Mas, infelizmente, a atenção não era eu. Ou felizmente porque dificilmente alguém se agradaria de ser pego de surpresa por um monte de câmeras às oito horas da manhã quando não acordou de muito bom humor. A atenção estava bem na minha frente.
Uma senhora, num dia parecido com o que eu estava vivenciando hoje, teve sua alegria às oito horas da manhã com a pequena ação do cobrador do C2. Era aniversário dela e ninguém a tinha parabenizado. Quando o cobrador, conhecido como Melancia, perguntou se estava tudo bem, apenas por formalidade, ela respondeu que não e explicou seus motivos. Então, Melancia decidiu dar um presente a ela: uma festa de aniversário dentro do ônibus. E assim são todos os anos.
Essa seria uma pauta perfeita para mim: “pessoas que trabalham de bom humor”, “profissionais que alegram a vida dos seus clientes”, “gente que trabalha de um jeito especial” ou qualquer enfoque deste tipo. Mas eu estava atrasada. Atrasada demais. Aqueles flashes eram de jornais e estavam acompanhados por várias câmeras de emissoras de televisão. Não bastasse a RBS, até a TV Al Jazeera pautava a popularidade do Melancia e da, agora, alegra senhora que tem festa de aniversário todos os anos.
Com muita dificuldade, driblei meus colegas de profissão e a turma que se divertia como numa festa qualquer. Passei pela roleta e me sentei lá no fundo, piscando de sono. Mas não consegui dormir. A agitação era intensa. Repórteres faziam malabarismos tentando enquadrar a festa de aniversário e seus principais componentes. Pessoas que vivenciavam apenas um dia comum de sua rotina reclamavam, xingavam, achavam aquilo tudo uma palhaçada imensurável, inexplicável, intraduzível. Alguns poucos riam e divertiam-se comendo os pedaços de bolo de chocolate que passavam nos pratinhos, de mão em mão, até alcançar algum interessado na sua doçura. Fiquei quieta, num dos cantos do ônibus, assistindo uma magnífica pauta esvair-se por entre meus dedos. Terei que admitir ao professor meu fracasso.
Um comentário:
Gostei do seu trabalho... eu comecei a escrever meu blog há pouco tempo também e estou procurando pessoas que façam o mesmo trabalho que eu... achei seu blog por acaso, pelo Google... mas li seus textos e gostei... parabéns...
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