segunda-feira, janeiro 29, 2007

A pauta do azar

Saí de casa para um dia normal, esperando que nada demais acontecesse. Caminhei três quadras até a parada de ônibus, confabulando, durante o caminho, as desculpas que daria para o professor. Minha matéria não tinha ficado pronta. Pensei. Pensei e pensei. E não encontrei nenhuma justificativa melhor do que “não tenho assunto para fazer matéria”. A verdade era que eu tinha passado uma, duas, três semanas ou mais exigindo que meus neurônios interagissem entre si e descobrissem um supertema que ainda não tivesse sido abordado por ninguém ou, pelo menos, que tivessem um brilhante insight acerca de um viés para tratar de um assunto do qual todo mundo já está cansado. A mínima esperança que eu tinha era que um furo jornalístico caísse na minha cabeça como uma gota de chuva perdida no meio de um dia completamente ensolarado. O que eu poderia contar de novo para uma sociedade completamente globalizada e que gira em torno da informação e busca cada vez mais acesso a ela? A não ser que levasse esta até um lugar completamente desprovido da globalização, mas não estaria tratando de nenhum assunto diferente, apenas transportando os mesmos até um ponto do planeta que nunca tivesse tido acesso ao mundo “civilizado”. Quer dizer, acho que há bem mais chances de eles viverem num mundo civilizado porque o nosso está longe de poder ser mencionado assim. Ou, quem sabe, eu poderia trazer eles até a nossa realidade em forma de matéria jornalística. Não, não. Definitivamente não. Com certeza alguém já deve ter descoberto aquela aldeia isolada e, mesmo que ninguém tenha chegado até ali, seria uma injustiça acabar com a vidinha pacata e feliz deles entregando-os às mãos da globalização.
Na parada do ônibus havia eu, uma moça – um pouco mais velha do que eu, talvez – e uma senhora. O ônibus chegou no meio dos meus devaneios e eu estava tão perturbada e, ao mesmo tempo, entretida, que nem sei dizer se ele demorou ou não para chegar. Quando eu vi, ele já estava parado, com as portas abertas, bem na minha frente. Por sorte, num dia que previa ser de azar, tinham mais pessoas comigo na parada. Se não, provavelmente não o enxergaria e teria que criar raízes na parada até chegar o próximo. Esse C2 é uma lerdeza mesmo. Teoricamente deveria vir um a cada quinze minutos, mas normalmente demora vinte e, claro, quando eu estou chegando na parada, ele sempre acabou de passar.
Subi no veículo logo atrás da senhora e dispararam flashes de uma dezena de câmeras fotográficas em cima de mim. Pensei que tivessem descoberto meu talento assim, do nada, que soubessem que eu pego aquele ônibus todos os dias no mesmo horário e estivessem ali somente esperando a minha chegada. Mas, infelizmente, a atenção não era eu. Ou felizmente porque dificilmente alguém se agradaria de ser pego de surpresa por um monte de câmeras às oito horas da manhã quando não acordou de muito bom humor. A atenção estava bem na minha frente.
Uma senhora, num dia parecido com o que eu estava vivenciando hoje, teve sua alegria às oito horas da manhã com a pequena ação do cobrador do C2. Era aniversário dela e ninguém a tinha parabenizado. Quando o cobrador, conhecido como Melancia, perguntou se estava tudo bem, apenas por formalidade, ela respondeu que não e explicou seus motivos. Então, Melancia decidiu dar um presente a ela: uma festa de aniversário dentro do ônibus. E assim são todos os anos.
Essa seria uma pauta perfeita para mim: “pessoas que trabalham de bom humor”, “profissionais que alegram a vida dos seus clientes”, “gente que trabalha de um jeito especial” ou qualquer enfoque deste tipo. Mas eu estava atrasada. Atrasada demais. Aqueles flashes eram de jornais e estavam acompanhados por várias câmeras de emissoras de televisão. Não bastasse a RBS, até a TV Al Jazeera pautava a popularidade do Melancia e da, agora, alegra senhora que tem festa de aniversário todos os anos.
Com muita dificuldade, driblei meus colegas de profissão e a turma que se divertia como numa festa qualquer. Passei pela roleta e me sentei lá no fundo, piscando de sono. Mas não consegui dormir. A agitação era intensa. Repórteres faziam malabarismos tentando enquadrar a festa de aniversário e seus principais componentes. Pessoas que vivenciavam apenas um dia comum de sua rotina reclamavam, xingavam, achavam aquilo tudo uma palhaçada imensurável, inexplicável, intraduzível. Alguns poucos riam e divertiam-se comendo os pedaços de bolo de chocolate que passavam nos pratinhos, de mão em mão, até alcançar algum interessado na sua doçura. Fiquei quieta, num dos cantos do ônibus, assistindo uma magnífica pauta esvair-se por entre meus dedos. Terei que admitir ao professor meu fracasso.

sábado, janeiro 20, 2007

A nata intelectual fabicana na festa mais underground de Porto Alegre

A mais nova parte integrante de um dos setores mais intelectualmente qualificados da capital riograndense foi obrigada a promover uma festa. Na Fabico (Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS) é assim: os calouros entram achando que são reis porque acabaram de passar num vestibular dificílimo, mas são tão bem recepcionados por seus veteranos que, mesmo não querendo, são forçados a lhes presentear com uma festa. A festa mais alternativa do ano, com a galera mais intelectual da cidade. Decidi ir pra lá. Afinal, com esse público exageradamente pensante, a festa prometia. Prometia tanto que fiquei boquiaberta com o que lá vi.
As festas normais são em boates e as pessoas se arrumam tanto que não é possível reconhecê-las por trás daquela “camisa de força”. Mas a intelectualidade tem de aparecer, portanto ela não se esconde atrás de fantasias de luxo. Fui na festa com a mesma roupa que eu passei o resto do dia. Uma festa feita por uma galera que usa Allstar para um público que passa o dia com mochilas penduradas nas costas não exige muita produção.
As festas alternativas são no galpão do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) – local onde as pessoas não pisam em cima de ti por pena. Um local perfeito para quem passa o dia inteiro de tênis e não se preocupa com aparências. A entrada é no barro (se chove vira um desastre!) – impossível equilibrar-se em cinco centímetros de salto naquela areia toda, quem dirá em dez, ainda mais agulha. A pista de dança é magnífica: volta e meia um escorrega e cai de bunda no chão naquele caldo composto de “ceva”, areia, suor e vômito que cobre todo o piso do salão.
A galera que curte as bandinhas desconhecidas, que venera o rock’n’roll e que menospreza o pagode delira ao som de Art Popular e Ivete Sangalo. As meninas que só usam calças largas espremem-se em calças de stretch ou fazem questão de mostrar suas coxas grossas – ainda que algumas não cheguem nem perto disso – em mini-saias que parecem cintos. Os Allstars do dia-a-dia transformaram-se em sandálias e botas de salto agulha de dez centímetros de altura, no mínimo, para esconder sua baixeza e insignificância. Do mesmo jeito que a abóbora transformou-se em carruagem a fim de levar a Cinderela até seu príncipe encantado. Mas é compreensível. Na festa havia centenas de príncipes encantados. Garotos inteligentes que carregam consigo todos os dias livros de literatura de diversas nacionalidades. Mas claro que na festa eles não estão com livros. Garotos que despejam nas garotas seus discursos intelectualizados para ver se levam alguma delas para casa, ou quem sabe para cama. Pouco lhes importa o que essas garotas vão lhes dizer depois, se sabem algo sobre literatura e, menos ainda, se entenderam alguma coisa da sua falação. Aliás eles rezam é para que elas não entendam e não notem todas as besteiras que falaram – que nada tem a ver com intelectualidade -, a fim de passar as mãos nas coxas que estão à mostra. Eles querem é que elas rebolem ao som do funk - que não dá trégua durante toda a noite de festa - para ver se suas mini-saias sobem mais um pouquinho (se é que é possível) e deixam escapar de trás de si algo mais.
Pseudo-intelectuais em uma festa pseudo-underground. Gente que através de uma metamorfose instantânea encarna uma pose que as bebidas alcoólicas destroem em questão de minutos. Os indivíduos “posudos” viram pessoas degradadas. Bêbados que, naquele momento, estão lado a lado com os “botequeiros” alcoólatras caídos no chão do lado de fora da festa. Passarão o fim de semana inteiro recuperando-se para na segunda-feira vestirem novamente sua máscara de nata intelectual.