A história pode já ser conhecida. Seu término, também. Afinal, tudo se passou em 1955, já há bastante tempo, quando sua primeira versão foi publicada no jornal El Espectador, em Bogotá, na Colômbia. Aliás, é o próprio Gabriel García Márquez quem não mantém mistério algum e a revela desde o começo – indício de que o conhecimento do fato não empana sua obra. Se foi republicada, quinze anos depois, em livro, há de pelo menos se supo que mereça ser lida. E, de fato, merece. Não só faz jus a tal suposição, como nos deixa tensos como se estivéssemos em contato com ela pela primeira vez, ainda que já saibamos seu fim.
Caldas, um navio da Marinha de Guerra da Colômbia, que saíra dos Estados Unidos com destino a seu país de origem, naufraga ao ser acometido por uma terrível tempestade no mar do Caribe. Passados poucos dias de busca, órgãos oficiais declararam mortos seus oito tripulantes. Entretanto, dez dias depois, surge, com vida, Luis Alejandro Velasco, único sobrevivente do desastre, para contar sua verdadeira história. Foi através das declarações do marinheiro que García Márquez escreveu Relato de um náufrago, revelando informações às quais a imprensa, até então, não tivera acesso e publicando, durante catorze dias consecutivos, no jornal onde trabalhava, a história do acidente e dos dias vivenciados por Luis Alejandro Velasco tentando sobreviver em uma balsa em alto mar.
A história começa quando a embarcação está prestes a deixar o território estadunidense e vai até a chegada do marinheiro no Hospital Naval de Cartagena, onde é mantido, a todo custo, longe do contato com os jornalistas. A maior parte da história, todavia, conta o período angustiante passado por Luis Alejandro Velasco, sozinho, dentro de uma pequena balsa, sem ter o que comer e nem beber. E, mesmo sendo de conhecimento do leitor que o texto foi escrito com base num relato do próprio sobrevivente, a perspicácia de García Márquez salta aos olhos. Afinal, como prender o leitor a um fato que não transpassa uma balsa de poucos metros, nem o infinito azul do mar? De que maneira, transcrever as emoções vividas, durante dez dias consecutivos, por um ser abandonado em meio a quilômetros e mais quilômetros de pura água salgada sem ser repetitivo? Mas se trata de García Márquez, jornalista e escritor que, doze anos depois, escreveu seu livro mais renomado, Cem Anos de Solidão, em que consegue manter a atenção do leitor focada em parágrafos que se estendem por três páginas, e, por conseqüência disso, entre outros motivos, foi condecorado com o Nobel de Literatura em 1982.
Sua ousadia fez com que o relato agitasse a Colômbia, exilando-o, então com apenas 27 anos, em Paris, na França, além de relegar à clausura o jornal El Espectador e desgraçar a carreira do único marinheiro sobrevivente ao desastre, que, com a mesma rapidez com que ficou conhecido nacionalmente por seu tamanho heroísmo, foi relegado ao esquecimento. Quiçá por isso o autor tenha presenteado a obra ao seu herói ao afirmar que “há livros que não são de quem os escreve, mas de quem os sofre, e este é um deles”.
Este blog é composto basicamente por críticas de cinema. Porém, esporadicamente você poderá encontrar aqui comentários sobre qualquer coisa que acontece no mundo e que sai na mídia, além de contos. Já prometi milhões de vezes atualizar este espaço pelo menos uma vez por semana, mas como, até hoje, não consegui, dá uma olhada de vez enquando. De um mês não passa! No mais, comente, pois é pelo que você acha que eu posso avaliar meu trabalho e tentar melhorar a cada dia.
domingo, dezembro 09, 2007
domingo, dezembro 02, 2007
Dolorosamente humano
O mínimo que se precisa conhecer sobre Fiódor Dostoiévski, antes de se aventurar a ler e a tentar entender sua obra, é a tamanha profundidade que ele consegue alcançar. Quem busca na literatura diversão e fuga dos infortúnios da realidade deve manter distância dele. Que recorra a ele quem deseja adentrar as entranhas do humano incompreensível e contraditório e refletir sobre a relação deste e os males do mundo. Embora, desde o início, a percepção social estivesse presente em suas histórias, é com Memórias do Subsolo, publicada em 1864, que o autor russo embrenha-se no universo dos conflitos psicológicos, morais e sociais de forma espantosa, relacionando-o ao desejo de fuga do humano de tais achaques através de seu próprio fim enquanto matéria. Exatamente por sua sagacidade na descrição de detalhes por vezes aparentemente intraduzíveis, se torna necessário deixar claros os limites impostos a uma resenha dessa novela.
A história está dividida em duas partes diferentes, porém intimamente ligadas entre si: O Subsolo e A Propósito da Neve Molhada. A primeira trata-se de um longo monólogo em que o personagem-narrador anônimo confidencia ao leitor suas mais desprezíveis e intrigantes características. Trata-se de um homem doente, que vive num apartamento localizado no subsolo de um edifício na companhia de um empregado ao qual humilha e menospreza. Demonstra plena consciência de sua mediocridade, mas, ao mesmo tempo, não se desvencilha praticamente nunca da arrogância insuportável que o assola. Deprecia todos que o rodeiam e deseja imensamente a solidão, da mesma maneira que parece aspirar à morte, ignorando sua saúde deficitária. Entretanto, sua condição humana o põe diante de situações em que lhe acomete o medo e em que acaba cobiçando imensamente fugir de sua condição. Esse personagem origina um monólogo ambíguo, em que ele afirma e, em seguida, nega o que acabou de afirmar, seja por meio de palavras ou do relato de suas próprias ações. Apesar de narrada em primeira pessoa, a segunda parte oportuniza ao leitor colocar-se como observador de quem acaba de confessar muito de sua personalidade; e averiguar a veracidade ou falsidade de seu relato, pois nos põe diante das próprias circunstâncias vivenciadas por esse narrador, inclusive algumas que ele expõe na primeira parte.
Escrito no momento em que a primeira esposa de Dostoiévski estava à beira da morte, não é um livro que afirma, mas que metralha o leitor de dúvidas. E é exatamente nisso que está um de seus maiores méritos. Afinal, se somos realmente esse humano tão confuso, temos nós a certeza de algo? A obra atormenta o leitor e não dá a ele nenhum momento do conforto almejado pela sociedade acabrunhada e desiludida. Quiçá só proporcione prazer àqueles que concordem com o personagem, que afirma ser “justamente no desespero que ocorrem os prazeres mais ardentes”. Parece não ser à toa que alguns identifiquem na obra prefigurações das reflexões de Sigmund Freud sobre o inconsciente humano. Influenciados por Memórias do Subsolo, materializam-se Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869) e Os Demônios (1872), representando a maturidade do maior expoente da literatura russa.
A história está dividida em duas partes diferentes, porém intimamente ligadas entre si: O Subsolo e A Propósito da Neve Molhada. A primeira trata-se de um longo monólogo em que o personagem-narrador anônimo confidencia ao leitor suas mais desprezíveis e intrigantes características. Trata-se de um homem doente, que vive num apartamento localizado no subsolo de um edifício na companhia de um empregado ao qual humilha e menospreza. Demonstra plena consciência de sua mediocridade, mas, ao mesmo tempo, não se desvencilha praticamente nunca da arrogância insuportável que o assola. Deprecia todos que o rodeiam e deseja imensamente a solidão, da mesma maneira que parece aspirar à morte, ignorando sua saúde deficitária. Entretanto, sua condição humana o põe diante de situações em que lhe acomete o medo e em que acaba cobiçando imensamente fugir de sua condição. Esse personagem origina um monólogo ambíguo, em que ele afirma e, em seguida, nega o que acabou de afirmar, seja por meio de palavras ou do relato de suas próprias ações. Apesar de narrada em primeira pessoa, a segunda parte oportuniza ao leitor colocar-se como observador de quem acaba de confessar muito de sua personalidade; e averiguar a veracidade ou falsidade de seu relato, pois nos põe diante das próprias circunstâncias vivenciadas por esse narrador, inclusive algumas que ele expõe na primeira parte.
Escrito no momento em que a primeira esposa de Dostoiévski estava à beira da morte, não é um livro que afirma, mas que metralha o leitor de dúvidas. E é exatamente nisso que está um de seus maiores méritos. Afinal, se somos realmente esse humano tão confuso, temos nós a certeza de algo? A obra atormenta o leitor e não dá a ele nenhum momento do conforto almejado pela sociedade acabrunhada e desiludida. Quiçá só proporcione prazer àqueles que concordem com o personagem, que afirma ser “justamente no desespero que ocorrem os prazeres mais ardentes”. Parece não ser à toa que alguns identifiquem na obra prefigurações das reflexões de Sigmund Freud sobre o inconsciente humano. Influenciados por Memórias do Subsolo, materializam-se Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869) e Os Demônios (1872), representando a maturidade do maior expoente da literatura russa.
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